Âmaga abriu lentamente a porta da sua casa, após três consecutivos giros no sentido horário da chave adornada pelo chaveiro que exibia uma foto dela com seu filho recém-nascido. Este veio há falecer horas depois do trabalho de parto, após meses de anseio, esperança e sacrifícios. Ela adentrou a sua bela casa, repleta de decorações místicas remetendo a uma atmosfera de profunda paz, a inéditos olhos. – Inspirou profundamente, até sorver por completo os pulmões: “Mais um dia de missão cumprida”. Expirou normalmente, colocou a bolsa e as chaves do carro em cima da mesinha de vidro com uma vela acesa a sua esquerda. Retirou com certa rispidez as sapatilhas que insistiam em criar calos em seus tendões. O suéter cor de abóbora logo já estava em cima da poltrona no centro-fronte da sala de visitas, que em acima resguardava a clássica “Retirantes” do saudoso Portinari. Lentamente, arrumando o cabelo sedoso escuro e longo e enxugando o suor das têmporas (fazia calor em Goiânia nesta época do ano) dirigiu-se para a cozinha para compensar a sede com um belo exemplar de uma polar long neck. Digo belo, pois há tempos estava na geladeira e aquela espessa camada de gelo rodeava por completo o corpo do vasilhame. Tomou um longo trago após a verificar que não estava congelada, apenas pós-gelada, se permitem dizer. Âmaga tinha se tornado uma deveras alcoólatra, após a morte do seu querido filho, a cada gole, sentia como se aquele líquido na garganta a livra-se do ar sulfuroso que eventualmente originava nó em sua garganta, somente pelo princípio de imaginar sua prole ao seu lado seja em qualquer situação ou lugar. Saiu da cozinha e subiu a escada, que resultava em seu quarto e de Almo, seu marido há quase 7 anos,- desde que começara seus estudos em etnobotânica na Faculdade Ayahuasca na Amazônia. Almo, fiscal de órgãos governamentais ligados a cultura e meio ambiente não se encontrava na residência. O casal havia se mudado para a capital de Goiás, logo após a conclusão acadêmica de Âmaga. Ele - foi transferido para aquela comarca, já ela – ganhara bolsa de estudos para investigar e estudar uma exótica planta do cerrado goiano, cujos frutos atribuíam manifestações espirituais a quem o ingerisse. O falecimento, de Esperanto, fruto da união carnal do casal, já completava um ano e nove meses. No seu quarto, âmaga despiu-se e deitou na cama, se lamentou porque a cerveja acabou e da solidão interior que a casa lhe preenchia. - A casa, era uma senhora casa: 4 quartos, sendo 3 suítes e 1 de empregada, sala de visitas, salão de jogos, banheiro para convidados, cozinha com dois acessos a enorme varanda aos fundos, recheada de flores, frutos e plantas de diversas espécies, plantada e escolhida a dedo de Âmaga, duas redes para dormir hasteada nas vigas que sustentavam o quarto da despensa e o tanque para lavar roupa e garagem lateral a varanda, cabendo dois carros confortavelmente sem trabalho para motoristas desatentos Enfim, era uma casa que agradaria qualquer materialista moderno -. Todavia, âmaga sentia em seu âmago, uma cigarra em que crianças traquinas dão um laço em sua cabeça, e usam o próprio inseto como brincadeira, e este, saem cantando desvairadamente tentando procurar alguma árvore para manter o equilíbrio do seu ciclo vital. E o canto dessa cigarra, gradualmente ia enfraquecendo. Levantou-se da cama coçando a nuca, ao seu lado, por cima dos ombros viu os porta-retratos vazios que comprava para futuras fotos de Esperanto. Deu um sorriso lastimoso, foi ao banheiro tomar o seu conhecido, banho demorado. Enquanto a banheira se enchia com águas termas, Âmaga ligou para o marido: chamou inúmeras vezes e caiu na caixa de mensagens. Despiu-se por completo, entrou calmamente na banheira e imergiu na banheira, com aquela idéia hipócrita de que as águas poderiam limpar seu coração das sujas agruras da vida.
Almo estava exasperado com a bagunça do seu gabinete, fruto das trapalhadas do novo estagiário que preenchia a sala na ausência do seu dono. Almo estava de viajem fiscalizando denúncias de que fazendas aos redores de Goiânia havia contaminando efluentes de rios com lançamentos de rejeitos e dejetos contaminadas com agro defensivos. Seu trabalho em Goiânia resumia a ir e vir, analisando, fiscalizando as inúmeras denúncias que chegavam a seu gabinete: Destruição de Patrimônio público, Animais Silvestres mantidos em cativeiro, Desmatamento sem autorização prévia de Órgãos competentes, Empresas sem a qualidade necessária para manter suas atividades poluidoras, Mendigos e degradados invadindo teatros e museus procurando abrigo para dormir, dentre outras diligências. Almo, era um sujeito notável pela sua aparência e admirado pelas suas atitudes íntegras e honradas. Dono de uma organização e respeito a horários perfeitamente notáveis. Sujeito equilibrado e perspicaz. Diziam as más línguas que no departamento onde trabalhava, ele era o segundo na escala de poder e hierarquia, só perdendo para o Senhor Doutor Fernando de Costa e Silva, que detinha esse título há quase 50 anos, mesmo após a sua aposentadoria. Almo, não se importava com isso, em seu seio, orgulhava de ser um empregado competente e um funcionário público digno de aplausos. Em seu gabinete, Almo arrumava pausadamente cada anarquia que encontrava, tinha um profundo senso e habilidade de não manifestar suas iras, mesmo, com toda aquela bagunça de papéis, documentos, chumaços, canetas, clipes, pastas...até uma xícara de café suja estava na sua mesa de carvalho seco, que Almo fez questão de trazes do seu último local de emprego. “Já era esse estagiário” pensava rancorosamente.
No meio dessa arrumação seu celular tocou. Almo nem fez questão de atender, pois sabia que era sua mulher que ligava. “Puta que pariu! Essa mulher não é mole” Deixou o celular tocando até cair a chamada. “Depois eu retorno” pensou com seus botões. Depois de alguns minutos sua mesa já estava do jeito que a deixara quando viajou. Arrumada, organizada, quase lívida a quem olhasse. Saiu, trancou a porta, despediu dos outros funcionários, bateu o ponto, atravessou a rua, caminhou cerca de 350 metros e quando virou a esquerda, o outdoor “Bar do Brou” que exibia lhe garantiu sorrisos de satisfação. Quando chegou ao bar, seus amigos de ofício já se encontravam, entregues as histriônicas risadas e divertidas brincadeiras que o álcool proporciona.
“Uai Almo, demorou pra caramba hein ? que que estavas fazendo rapaz ?” –perguntou lhe, Bertoldo, O gordo, que o apelido fazia jus ao seu arquétipo físico.
“Oh gordo, começa não, hoje viajei cedo para uma fazenda perto de Ara Goiânia, pessoal lá me recebeu com berro nas mãos, foi canseira, entenderam que a gente era sem-terra, rapaz, e no desembaraçar dos fatos, quando cheguei ao departamento agora a pouco, aquele imundo do novo estagiário, por cargas d’água sabe lá, bagunçou meus papéis todos. E como cereja do bolo, a Patroa não para de me ligar”-Encerrou o enfurecido comentário exibindo o celular para o amigo.
“Relaxa Almo, senta aí, pede um copo, toma uma gelada, e vamos curtir a vida”-Complementou Orestes, que se dizia parente distante de Luiz Carlos Prestes.
“Com cerveja!” Comentário entedia mente repetitivo em diversos rodas de bares por este mundo afora, mais incisivo para a ocasião. E por menores que seja comentar, o celular de Almo não parava de tocar, até irritá-lo e num veemente gesto, desligou-o.
Retornaram a prosear, histéricos e ansiosos, sobre futebol, trabalho, mulher, dinheiro e com menos intensidade e mais peso na voz, família.
Deliberadamente Âmaga, deitou-se em sua cama após o banho e as apalpadelas com os infindáveis cremes em sua cabeceira. Estava a ler o belo exemplar do livro “Fausto” de Goethe. Ficava-se imaginando se Almo poderia sentir um dia o turbilhão de emoções que o protagonista do livro sentia por Margarida, excluindo o seu nefasto destino e o pacto com o “inimigo da luz”. Procurou o telefone, decidiu para si mesma que seria a última vez que tentaria ligar para o marido. Com a mão e polegar esquerdo, canhota por natureza, teclou no inventário de chamadas, escolheu o número e discou. A cada sinal de chamada, sentia algum tipo de objeto afiado estocar o seu coração. Chamou seguidas vezes, até cair na familiarizada, caixa de mensagens. Em um acesso gratuito de raiva, arremessou com rispidez o telefone na parede, e este se despedaçou. Abriu com voracidade a primeira gaveta da cabeceira onde continha os cremes, pegou um chumaço de papel e uma caneta, em largas passadas dirigiu-se a cozinha, abriu a geladeira, tomou uma lata de cerveja, sentou-se, e pôs a escrever. No processo de escrita, antigas anedotas causou-lhe sorrisos eufóricos. Textos com descrições de futuras situações em três. Logicamente, se seu filho não partisse desta, para melhor. Entretanto, não havia três, tampouco duas. Exista apenas ela. Pensava Âmaga, com rancor. Rancor de quem vê um presente diferentemente do que no passado, pôs a construir, com amor e astúcia. Sentimentos e Habilidades que não valem absolutamente nada, se não existir partilha. Estranhou as lágrimas que umidificavam a sua face. Eram frias, escusas. Não sentia apenas tristeza e solidão, sentia o vazio, o vácuo, mergulhada na escuridão do presente, sem vida, sem cor, sem nexo. Além da compreensão popular, cada ponto do seu corpo estava adormecido, tenro. Sua alma estar-se-ia amordaçada. Fechou os olhos. Viu uma luz opaca, trêmula. Obstinada foi ao encontro dessa luz, afastando contraditoriamente, a cada passo que executava em sua direção. Sua mão tocou uma camada fria de azulejo, e aos poucos uma placa de metal com pregos que sustentava objetos. A luz, agora, histriônica e lívida, era qualificadamente interessante, em vista aos sentimentos que agora, Âmaga sentia por completo. Esta luz lhe exaltava conforto, comodidade. “Minhas forças estão escassas, estou exausta, não combati o bom combate” – Dizia a si mesma. Aliás, não sabia se tinha dito ou escutado. Aparentemente, era tudo a mesma coisa. Sua mão tocou um cabo roliço na placa da parede, anatômico, agarrou-lhe com força impetuosa. Sua jugular parecia enxada e doer-lhe, como se a enfermidade “bócio endêmico” na verdade não fosse ao pomo de adão, e sim nessa região. Lentamente, a lâmina fria serpenteava pelo pescoço de Âmaga. “Que alívio”-Escutou novamente a voz. Contudo, a luz estava chegando, aproximando, encurtando, não conseguia mais abrir os olhos, a luz lhe cegava por completo, após Âmaga sentir se agarrada pelos tentáculos luminosos. E em um gesto rápido, prático, cirúrgico, a lâmina adentrou o seu pescoço, abrindo-o, esquentando-o. O sangue a jorrar como cataratas. E a luz ora esplêndida, ora misteriosa, se tornou a mais profunda e densa que se possa imaginar.
“È meus amigos, deu minha hora”. Almo se levantara, despedindo de Gordo e Orestes, quase derrubando os vários vasilhames de cerveja expostos na mesa Âmaga tinha acabado de ligar, o que deixou Almo irritadíssimo, já não contente pelos acontecimentos do dia. “Essa mulher é dose” pensou. Retornou ao departamento, verificou se sua sala estava de acordo com o que tinha deixado, para constar-se. Entrou no elevador, desceu até o estacionamento, entrou no seu carro, deu a partida, e tomou o caminho para a sua residência. “Âmaga que se prepare, vou provar na cama, a minha ausência” Divagou deliciosamente, enquanto tentava ligar para a esposa. “Diabo, que não atende, deve ter ido dormir”. No som do carro, Almo cantava alegremente todas as músicas de “Cartola-1976” por mais contraditório que se possa parecer. “Quem me vê sorrindo” disse para si próprio. Pisou fundo no acelerador. Há dois quarteirões da sua casa, colocou o carro em porto morto, para chegar sem fazer barulho e ter perigo de acordar esposa. Almo sabia, e como sabia, acordar Âmaga do seu merecido sono, sem aviso prévio, ou com métodos nada carinhosos. Estacionou o carro, ligou mais uma vez para a esposa para certificar-se que ela realmente estaria dormindo. Abriu lentamente a porta da sua casa, após três consecutivos giros no sentido horário da chave adornada pelo chaveiro que exibia uma foto da bela esposa com seu filho recém-nascido. Adentrou, trancou a porta. Colocou a sua pasta ao lado da bolsa de Âmaga e a chave na mesinha de vidro, pensou em ir à cozinha, mas exitou-se. Subiu as escadas lentamente, para não fazer qualquer tipo de ruído. Entrou no quarto. Estava vazio, o livro de Goethe sobre a cama. O quarto estava em silêncio. Dirigiu-se ao banheiro. Talvez a esposa pudesse, após a leitura, ter querido tomar um de seus famosos banhos. Constatou que estava errado. Uma subida e histérica intranqüilidade envolveram o seu espírito. “Querida!”. Chamou. “Querida!”. Gritou. Quando desceu as escadas e já totalmente tomado pelo desespero, -pois não era comum, nesse horário, Âmaga não estar em casa, sem pelo menos um aviso- entrou na cozinha e a cena que viu, lhe deixou terrivelmente horrorizado: 5 latas de cerveja em cima da mesa, o corpo da esposa ensangüentado, jazido ao chão, de modo que se fosse um fantoche, sem elasticidade, ou forma que habitualmente Almo estava acostumado a ver. Caiu de joelhos em prantos, sem direção, chorando compulsoriamente, as mãos a cabeça, os olhos esbugalhados em direção a sua amada esposa. Parecia não acreditar na cena a sua frente. Viu um chumaço de papel ao lado das cervejas, não hesitou e rapidamente pode ler, em uma caligrafia trêmula e garrachanda – “A pior dor mundo é amar algo que nunca se pode ter”. Enquanto as lágrimas manchavam o pedaço de papel e a culpa e remorso tomavam por completo o coração e alma de Almo.
Walter Luiz Baptista Filho
10/01/2010